SOBRE FOLIA DE REIS:
Para efetuar este trabalho ao qual me propus para a Rede integração de televisão, afiliada da Rede Globo em Uberlândia, Estado de Minas Gerais, andei lendo várias teses de mestrado sobre o tema, a fim de ficar a par de um assunto tão relevante quanto o é a Folia de Reis. E percebi que, dentre outras, havia uma constante queixa dos autores sobre a fugacidade da sociedade atual, no tocante à interferência no ritmo das músicas de Reis, que, volta e meia, os modifica dando às velhas canções uma roupagem mais atual com a constante mudança dos seus ritmos, o que põe em risco a originalidade dos ritos da festa. Em uma das passagens, li a seguinte observação: “Apenas as letras permanecem. A toada mudou.”
O profundo desapego da sociedade moderna preocupa. Com a existência tão banalizada, ela vê tudo com um olhar efêmero, passageiro.
Ora, se, por um lado, ritmos mais dinâmicos trazem a Folia de Reis para um patamar mais atual, no qual ela possa ser vivenciada aos moldes e aos gostos de tempos mais contemporâneos –, por outro, eles abalam a originalidade da tradição, visto que as constantes modificações descaracterizam a festa, a ponto dos mais jovens cumprirem a trajetória de suas vidas de uma ponta a outra, sem ao menos, no entanto, ter conhecido a verdadeira fundamentação da festa religiosa, as cantorias em seus ritmos originais, seja na caminhada com a bandeira à frente, seja em torno do presépio na louvação. Daí, insistirmos tanto em nossos vídeos sobre a preservação das músicas em seus ritmos originais. Porque nem tudo nesta vida nasceu para ser progredido, modificado.
Outro ponto muito ressaltado por todas as biografias lidas é sobre os preocupantes números advindos do êxodo rural. A saída do sertanejo do campo, que migrou para a cidade, representa uma grande perda para a tradição da Folia de Reis, que já duras séculos por aqui. Com essa forte tendência, nota-se que o campo esvaziado ficou desarticulado, e as nossas raízes estão se perdendo, porque os foliões que migraram para a cidade em busca de melhores condições de vida levaram as tradições consigo. E os poucos que ficaram, ou se fecharam no isolamento pela distância entre uma casa e outra, ou pela violência que também já chegou ao campo, ou ainda porque, simplesmente, o seu tempo já venceu aqui na terra.
Eu, por exemplo, que vivi a minha infância no campo, na década de 1960, lembro-me como se fosse hoje, quanta gente se avizinhava do nosso sítio... os carreadores eram animados, havia muita gente nas casas, as famílias eram grandes e ouviam rádio. Com a chegada da televisão, as pessoas se enclausuraram em seus lares, paralisadas frente à tela; os vizinhos pararam de se visitar; quando não, agendavam novenas e missas para antes ou depois das novelas. Isso é lastimável do ponto de vista social e familiar, pois esta falta de socialização elimina o forte sentimento de vizinhança, no qual um vivia para o outro, os fortes laços de família que se engendram em torno da união de parentesco e da cordialidade comum a todos. E foi por tudo isto e pensando nisto tudo, que a Rede Integração fez questão de investir em um dos poucos eventos rurais que ainda existem na região de Uberlândia no tocante à Folia de Reis rural, para montar estes trabalhos que vocês verão a seguir. Ao longo destes dez anos maravilhosos vividos em terras mineiras, percorri muitas festas de Reis urbanas, que, embora lindas, deixavam dentro de mim um vazio, visto que eu sabia que elas já vinham desprovidas de originalidade, já que é sabido de longa data por todos que, no começo dos tempos, a Festa de Folia de Reis acontecia no meio do poeirão da roça... embaladas pelo cheiro das estrebarias e do café coado na hora.
Curiosa como sou das coisas da terra, fiz questão de ir ver pessoalmente como a festa ocorria. Fiquei maravilhada com a Folia de Reis na Mata dos Dias. Ela me lembrou aqueles casamentos antigos que movimentavam famílias e mais famílias quando eu era criança. Lá puder ver a fé e o desejo vivo dessa gente mística, que saiu de casa em casa o ano todo pedindo donativos a fim de manter a tradição da festa, doando o seu trabalho, movendo dezenas de pessoas, que montaram barracas, presépios naturais e muita comidaria, que gerou insondável comilança.
Na véspera do dia de reis, destampei por capricho e por curiosidade, uma por uma, dúzias de latas de vinte litros de doce de leite de vários tipos, de mamão, de goiaba, de banana, queijos... mesas compridas das tradicionais almôndegas que não podem faltar nessa festa rural... e outras tantas delícias da culinária mineira, que só de pensar enchem a minha boca d’água. Tudo isto vivido e presenciado em nome da tamanha fé que essa gente tem nos Santos Reis.
Hoje, como sabemos, o tempo da jornada que lembra as andanças que os santos reis fizeram, em sua viagem a Belém, já não está mais restrito à noite do Natal até o dia dos Santos Reis, ela acontece o ano todo, com exceção do período da quaresma. E os textos que fiz são sempre no sentido de reacender a chama da Folia de Reis Rural, com passagens como esta: “ com a bandeira sempre à frente, os foliões partem para a peregrinação das casas, alegrando os devotos da roça.” Quando, na realidade, sabemos que, em sua grande maioria, as festas hoje acontecem nas superficiais vias pavimentadas com hora marcada e com conversas que atrapalham a cantoria. E me marcou profundamente uma passagem que li e que, por isso, merece ser transcrita aqui para que sintamos a nossa responsabilidade perante as transformações do mundo: “o fato é que as grandes caminhadas de dias e noites pelas casas dos devotos se perderam. Hoje, elas acontecem na cidade, e com hora marcada.”
Outra coisa lamentável que não pude deixar de observar nos depoimentos é que, antigamente, quando a bandeira dos Santos Reis chegava a uma casa, na roça, a atitude do anfitrião era a de como se o próprio Jesus vivo no presépio estivesse ali chegado. Os devotos se emocionavam e choravam de alegria. Hoje, com o progresso, com a ida da Folia de Reis para a cidade, e, concomitantemente a isto, com a proliferação dos meios de comunicação, é muito comum a folia estar na sala e os outros membros da família estarem assistindo à televisão ou ouvindo som no quarto. Ato este considerado pelos mais velhos como muito desrespeitoso para com o presépio e com os Santos Reis. Detalhe que também não escapou à nossa abordagem televisiva, pois fizemos questão de fazer um vídeo e um texto especialmente levando em conta essa problemática para que as pessoas se conscientizem da importância da mudança de atitude.
Mostrando uma Folia de Reis tradicional da roça, procuramos, acima de tudo, despertar o saudosismo; despertar velhas lembranças, para que os fazendeiros rurais e urbanos sintam-se persuadidos a formar novos ternos de Folia de Reis rural, a fim de que levemos, para bem além das próximas gerações, essa belíssima tradição que, graças a Deus e ao seu abençoado povo mineiro, é muito forte no Estado de Minas Gerais.
...E todo o trabalho do departamento de programação da Rede integração, foi no sentido de resgatar a verdadeira folia de reis rural, tanto no áudio, quanto no vídeo! E o público tem nos mostrado com ações práticas do dia- a -dia, que todo o nosso esforço valeu a pena, que todo o nosso trabalho não foi em vão.
VERA FORNACIARI
Uberlândia, agosto de 2007.
segunda-feira, 3 de setembro de 2007
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Um comentário:
Bom, gostaria de fazer apenas uma ressalva em relação ao seu texto. Também sou admiradora da Folia de Reis, essa manifestação cultural tão significante, e percebo bem as mudanças ocorridas na mesma. Contudo, é bom lembrarmos que a cultura não é de modo algum congelada, pelo contrário, ela é dinâmica, ela se reinventa e se resignifica. As críticas que você fez em relação às mudanças, ao meu ver, são pertinentes contudo essas mudanças são mais pertinentes ainda. A sociedade muda, os valores mudam e não há possibilidade nenhuma de congelar a Folia de Reis. Ela acaba tendo que se adaptar a sociedade, é inevitável!
Entendo plenamente duas criticas, e como já ressaltei, as acho totalmente pertinentes. Mas fica o questionameto: há como a Folia permanecer "original", sendo que quem as promove são frutos de períodos e épocas diferentes? Como negar ou fugir das influencias sociais? Acho essas mudanças inevitáveis, por isso prefiro chama-las de resignificações, e estas sim são uma forma de preservar a cultura, de mantê-la!
Gostaria de ter sua opinião acerca do que escrevi!
Obrigada!
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